13 de mai. de 2009

Passou a mão pela testa, confusa, como se também ela já fosse perdendo a fala, não conseguia mais pensar em termos de palavras, ela estava se metamorfoseando, e transfigurando-se enfim em si mes­mo — e penetrando nesse ultrapassamento cujo máximo é ter uma cara que sabe.

Iniciado agora no silêncio — não mais no silêncio das plantas, não mais no silên­cio das vacas, mas no silêncio dos outros — ela não sabia mais como se explicar. O que, ao mesmo tempo que lhe parecia a grande decadência e a queda de um anjo, pareceu-lhe também uma ascensão. Mas isso só entende quem, em esforço impalpável, já se metamorfoseou em si mesmo. A essa altura não sabia mais nada. Senão aquela mistura de cansaço, covardia e gratidão, onde ela enfim se mexeu com o gosto um pouco ignóbil e delicioso de um lagarto na lama. Mas alguma coisa se criara.
Exausta, mas se criara.

Sobretudo ela estava muita cansada. Quisera ela própria arcar com um far­do — “arcar com o fardo” era um dos símbolos antigos que ela precisara averiguar sozinha, resto de procissões e de jogos atlé­ticos a que assistira. Ela própria quisera arcar com o fardo e levá-lo adiante. Ela própria, além de tocar nos símbolos, nada pudera fazer. Ele protegeria com a ignorância o fardo, sem abrir-lhe o mistério, levando-o intacto e assim por diante, etc. Uma vez ou outra, então alguém inventava uma vacina que curava.

“Mas eu também tinha o direito de tentar!”, revoltou-se ela de repente, “eu queria o símbolo porque o símbolo é a verdadeira realidade!”
Que é mesmo que ela estava pensando?

Nada. A memória termina vol­tando.
Que é mesmo que ela estava pensando? Nada, aliás. O mundo era bonito, isso não se discute. E tudo estava certo. Futuramente certo.
“O que é mesmo que está certo?”, atrapalhou-se. Sua cabeça cansada se confundiu, ela não sabia muito bem o que é que está certo. Tentou então, com esforço sobre-humano, pros­seguir. Mas parece que não podia.

Parece que não podia, e que sua boa vontade não bastava; aí é que estava o problema. E agora, que se achava quase no fim da jornada, tendo quase ao alcance uma certa palavra ou um certo sentimento — agora ela não tinha força para estender o braço fatigado e alcançar. Tinha que parar ali onde parara, e transferir para os outros a construção da marcha. E ali humilde­mente ficar. E de novo ter como ideal máximo, adivinhar.
Tem uma coisa que nunca saberemos, você sente isso, não sente?

Só a impaciência do desejo lhe dera a ilusão de que o tempo de uma vida era tempo bastante. E só assim a palavra tempo teria o sentido que um dia ela adivinhara.

Exausta, como se já o tivesse tido alguma vez, ela o re­conheceu. O único modo de descobrir era, aliás, reconhecer. Assim era.
E foi assim que aconteceu, sem mais nem menos: ela teve a certeza. Como? Vamos dizer que uma pessoa tivesse um cérebro matemático mas ignorasse que existem números — de que modo então essa pessoa pensaria? tendo a certeza! Também a esperança é um pulo. Então jogou tudo na certeza. E ficou muito quieta.

Aliás, ela sabia a verdade. Embora não pretendesse pro­nunciá-la nem sequer sozinha — consigo mesmo, pois, a verdade, quando pensada, é impossível. A verdade foi feita para existir! e não para sabermos. A nós, cabe apenas inventá-la. A verdade... — bem, simplesmente, a verdade é o que é, pensou com uma profundeza que o depôs exatamente no vazio.

A verdade nunca é aterrorizante, aterrorizantes somos nós. E também, como que “a verdade acontecerá”. Quem não acreditar que a verdade acontece que veja uma galinha andando por força do desconhe­cido. “Aliás a verdade tem acontecido muito” —Essa profundeza de onde — de onde uma grande onda de amor lhe nasceu no peito.
De início, não sabendo que fazer com o amor, sua alma cambaleou um pouco com tanta crueza. Então ficou quieta, estóica, agüentando firme.

Ela se sentimentalizou toda, ficou tenra e amolecida — o que foi pra­ticamente ruim porque desviou o curso de seus pensamentos. “Agora sou obrigada a começar tudo do começo”, pensou muito perturbada. Mas agora era tarde para voltar com alguma frieza, pois estava toda emocionada. Foi então que — fazendo dentro de seus limites um círculo per­feito, e a sorte dela era rara em poder voltar por meios obscuros a seu próprio ponto de partida — num círculo perfeito dentro de seus escassos limites, ela então quis ser boa. Porque, afinal, adiando sine die o mistério, essa era a hora imediata. E sobretudo porque, afinal, “o outro homem” é o pensa­mento mais objetivo que uma pessoa pode ter! ela que quisera tanto ser objetiva.
Olhou. E sem a menor sombra de dúvida, viu concretamente.

O coração dela estava confuso. Foi um longo caminho. E é ver­dade que ainda minto (omito?) muito; menti tanto quanto precisei: mas talvez mentir seja o nosso mais agudo modo de pensar; talvez mentir seja o nosso modo de agarrar; e eu agarrei muito; minhas mãos têm um passado; foi um longo caminho, e eu tive que inventar os passos; mas esta inocência que sinto em mim é a meta; pois sinto, também em mim! a inocência e o silêncio dos outros. Nós somos as nossas testemunhas, não adianta virar o rosto para o outro lado. O consolo é que nem todos têm que depor e gaguejar, e só alguns sentem a danação de procurar compreender a compreensão. Estaria ela por acaso descobrindo a pólvora?

Não há dúvida: a coisa é ilógica, e ter esperança é ilógico.
Seu cinismo, ou o que quer que fosse, não se sustentou muito tempo.

Ela deve falar da ilógica.



cl

1 comentários:

____ disse...

.....Olha só...

Falando em Simbolo.....


O BLOG --> O POST

pS: Todo mundo tem o direito de tentar, tentar é o que nos resta. O que nos resta é indispensável. O que é indispensável é o que nos resta..... o que é que nos resta?
Ah! Sei lá. Esse raciocínio também termina voltando!

Adorei!

Pensaram por aqui

 

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