31 de mar. de 2009

A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores em um jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva da vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio.

Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Convalescença de um prazer frígido. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência. Será que não sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim - mas com muito cuidado porque senão por um triz não sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo café no terraço no limiar deste crepúsculo que parece doentio apenas porque é doce e sensível.
Para cada um de nós e - em algum momento perdido na vida - anuncia-se uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada: apenas vivo.

Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel. O destino é implacável.

Estaria por acaso descobrindo a pólvora? Mas talvez seja assim mesmo: todo homem tem que um dia descobrir a pól­vora. Ou então não houve experiência. E seu fracasso? como se conciliar com o próprio fracasso? Bem, toda história de uma pessoa é a história de seu fracasso.

Por que então lutar? Havia dentro de uma pessoa um lugar que era pura luz, mas não reverberava nos olhos nem os empanava; era um lugar onde, fora de brincadeira, se é; onde, sem a menor pretensão, se é; onde, modéstia à parte, se é; e também não vamos fazer, do fato de ser, cavalo de batalha! não vamos complicar a vida: pois a este tranqüilo gozo temos direito! E nem é coisa sobre a qual se possa sequer discutir pois, além do mais, falta-nos a capacidade do argumento — e, para falar a verdade, muito antes de sabermos. final, por direito de nascença, temos direito de ser o que somos — en­tão vamos aproveitar, não vamos exagerar o fato dos outros serem importantes! pois existe em mim um ponto tão sagrado como a existência dos outros, os outros que se arranjem! um homem tem por nascença o direito de dormir tranquilo — por­que as coisas também não são assim tão perigosas e o mundo não acaba amanhã, o medo confundiu um pouco a realidade com o desejo, mas o cão em nós conhece o caminho, que diabo! que culpa tenho eu da cara silenciosa dos homens, é preciso também confiar um pouco, pois nós, temos fortes instintos e bons dentes, sem falar na intuição, e afinal temos por nascen­ça essa capacidade de nos sentarmos de noite calados à porta de casa. Do que nascem algumas idéias...

Algumas idéias, e o espan­to. O espanto, a cólera, e então a porta da casa se torna pequena, e não bastam esses sentimentos e esses direitos, falta nascer alguma coisa a mais... Que é que falta? Quando a casa própria se torna pequena, o homem parte de madrugada para trazer de volta alguma coisa.

30 de mar. de 2009

Alguma coisa em mim
Ainda vai longe
Alguma coisa em mim
Não vai dar pé
Alguma coisa em mim
Parece que foi ontem
Alguma coisa em mim
Quer acontecer
Alguma coisa em mim
Não é mais minha
Alguma coisa em mim
Saiu da linha
Alguma coisa em mim
Não disse a que veio
Alguma coisa em mim
Acerta em cheio
Alguma coisa em mim
Não tá na cara
Alguma coisa em mim
Não tá com nada
Alguma coisa em mim
Não dá desconto
Alguma coisa em mim
Eu nem te conto
Alguma coisa em mim
Não tem mais fim

26 de mar. de 2009



“Eu fui para a floresta porque queria viver deliberadamente, eu queria viver intensamente e sugar toda a essência da vida, acabar com tudo aquilo que não fosse vida, para que quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi.”



Byron

24 de mar. de 2009

Nesta densa selva de palavras que envolve espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha e que no entanto fica inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim é que está fora até de pensar?

Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico - a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.

Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando que se sabe andar e - milagre - se anda.

Eis que de repente vejo que não sei nada. o gume de minha faca está ficando cego? Parece-me que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim e que ainda não tem pensamentos correspondentes, e muito menos ainda uma palavra que a signifique. É mais uma sensação atrás do pensamento.

Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos - é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre esta vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.

E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica.

A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha.

Mas conheço também outra vida ainda. Conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. É uma vida de violência mágica. É misteriosa e enfeitiçante. E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. Sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade.

Eu, que corro nervosa e só a realidade me delimita. E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me toda cheia e ininteligível. Depois a madrugada vem com seu bojo pleno de milhares de passarinhos barulhando. E cada coisa que me ocorra eu a vivo aqui anotando-a pois quero sentir nas minhas mãos perquiridoras o nervo vivo e fremente do hoje.

Atrás do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a dividi-lo em palavras - e o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus segredos. Sei que tenho medo de momentos nos quais não uso os pensamentos e é um momentâneo estado difícil de ser alcançado, e que, todo secreto, não usa mais as palavras com que se produzem pensamentos. Não usar palavras é perder a identidade? é perder-se nas essenciais trevas daninhas?

Perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias. Realizo o realizável mas o irrealizável eu vivo e o significado de mim e do mundo e de ti não é evidente. É fantástico, e lido comigo nesses momentos com imensa delicadeza.

Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair. Meu anjo aleijado que se desajeita esquivo, meu anjo que caiu do céu para o inferno onde vive gozando o mal.

Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se vêem da janela do trem.
São quase cinco horas da madrugada. E a luz da aurora em desmaio, frio aço azulado e com travo e cica do dia nascente das trevas. E que emerge à tona do tempo, lívida eu também, eu nascendo das escuridões, impessoal

Inquieta. Os litros de sangue que circulam nas veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em plenilúnio. Parambólica - o que quer que queira dizer essa palavra. Parambólica que sou. Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maças. Eu sou uma cadeira e duas maças. E não me somo.

O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante.

Mas agora estou interessada pelo mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar dele com a palavra. Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do outro que o refletiu em um tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o espelho. Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. E mal posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros.

Clarice L. 

23 de mar. de 2009

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança, no fundo


Fernando Pessoa

22 de mar. de 2009


De longe vejo passar no rio um navio...
Vai Tejo abaixo indiferentemente.

Mas não é indiferentemente por não se importar comigo
E eu não exprimo desolação com isto.
É indiferentemente por não ter sentido nenhum
Externo ao fato ...........] amente navio
De ir rio abaixo sem rumo (?)] de metafísica
Rio abaixo até à realidade do mar.




Alberto Caeiro

20 de mar. de 2009


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria?

Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu" que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar.

Diria melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria?

Logo de início se sente um constrangimento: a mentira a que nos acomodamos acabou de ser levemente removida do lugar onde se acomodara.

No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida.

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar.

Acho, por exemplo, que por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecimento.

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras na festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir.

Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar.

Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.



C.L

18 de mar. de 2009

Ando com a cabeça cheia
Penso por demais da conta
Olha que a coisa tá feia
A qualquer hora alguém te apronta

Tantas pontas desatadas
Rolos que não tem mais fim
Não dá pra saber de tudo
Nada é tão claro assim

Ando com a cabeça cheia
É melhor esvaziar
O que pesa mais é o sonho
E no pensamento ele não tem lugar

Quem precisa de problema
Ainda mais sem solução
De problema desse tipo
Eu já tenho coleção

Ando com a cabeça cheia...



Alice Ruiz


*A madrugada é sem dúvida o melhor momento do ócio criativo.

16 de mar. de 2009


Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa coma somente a cereja
Jogue para cima faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena reze um terço
Caia fora do contexto invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre


Alice Ruiz

13 de mar. de 2009

Tô cansada do meu cabelo
Tô cansada da minha cara
Tô cansada de coisa vulgar
Tô cansada de coisa rara
Tô cansada
Tô cansada
Tô cansada de me dar mal
Tô cansada de ser igual
Tô cansada de moralismo
Tô cansada de bacanal
Tô cansada
Tô cansada
Tô cansada de trabalhar
Tô cansada de me ferrar
Tô cansada de me cansar
Tô cansada de descansar
Tô cansada


*Adaptaçao da letra de Arnaldo A.
Tô cansado

12 de mar. de 2009


Há momentos difíceis pela vida
Que a gente pensa em desistir
Jogar tudo pro alto
E pegar mundo afora
E sumir

Não há muito o que recordar
Se a sua família sempre lhe rejeitou
Condenando seus atos e velhacos amigos
Nunca lhe reparou

Será o estresse que desce nas veias dos corações
Ou é uma prece que tece a teia de novas paixões
Das bandeiras perdidas
Rasgadas nos mastros das religiões
Que são guardiões da culpa, da dor!

Eu sei que o que você precisa
Nesse momento é de muito dinheiro
Pra pagar suas contas e dívidas
Com a vida e com Deus
Mas não são os meus pecados
Que irão lhe absolver
É muito mais a idéia
De enfrentar o problema e de resolver

Não vou cometer um erro banal
Pra te convencer, eu quero é poder!
Poder infinito de te conhecer
Você é a única coisa que eu quero
Nesse mundo vão
Me dê sua mão, a voz, já vou!

9 de mar. de 2009

Muitos de nós, homens e mulheres, enquanto executam uma tarefa usam, ao mesmo tempo, freios mentais e emocionais para evitar executá-la. Quando a “cabeça” está fazendo uma coisa sem querer muito fazê-la, usamos tanta energia em forçar-nos, quanto a que usamos no trabalho propriamente dito. Metade de nossa vontade é aplicada no trabalho, e a outra metade “contra” o trabalho - como um carro freado que tenta avançar. Uma tarefa desagradável cansa dez vezes mais do que uma agradável.
O que fazer quando o trabalho desagrada? Ou mudar de trabalho - ou mudar de atitude em relação ao trabalho. qualquer trabalho com o qual nós concordamos pode ser agradável. Se obtivermos o nosso consentimento, e concordarmos sem reservas, o cansaço diminui mesmo.


Clarice Lispector in Só para mulheres


Cantinho da Neurose: Sem neuras, só homenagens. Homenagem para a mulher mais importante da minha vida, minha mãe.

8 de mar. de 2009

O nome do destruidor é
Destruidor
É o nome do destruidor.
O nome do construtor é
O nome
Do construtor.
A face do construtor.
O que ele constrói.
A obra do construtor.
O destruidor não pode mais destruir
Porque o construtor não constrói.
O construtor não constrói porque
Não pode mais construir.
A face do destruidor


T

2 de mar. de 2009

Estamos aqui.

Pois não?

Não vou me render a tais desvios obsoletos.

Querem nosso sangue. Duas doses, de ética por favor.

Eu poderia conviver com eles, mas os analgésicos da convivência não foram eficazes.

Você está na mira, no alvo. Um cão sem dono.

Guardem munição para o próximo motim.

Estamos nos especializando nisso não?

Pois sim.


Camila Karina

Pensaram por aqui

 

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