28 de fev. de 2010

Por vários corredores, pisos lisos, brancos, vazios
Incertos caminhos, corredores de ecos traçados por linhas mínimas
Os pés cortados e rostos envoltos no drama
A sobrevivência diante dos olhos
Em cada encontro a mesma pergunta
Os caricatas e suas folhagens incompreensíveis
Estavam à procura da saída
A ala psicológica de escadas difíceis
Estreitas por si
O armário que oculta os segredos
Afastado por mãos desconhecidas e sábias
Eis a saída: porta estreita, encolhida e esperada
Desperto.


Camila Karina

27 de fev. de 2010

"Quem sabe mal digo mentiras, vai ver só minto verdades."


Paulo Leminski

" Somos inocentes em pensar, que sentimentos são coisas passíveis de serem controladas. Eles simplesmente vêm e vão, não batem na porta, não pedem licença. Invadem, machucam, alegram (...) "


Caio Fernando Abreu
"Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente"

Caio Fernando Abreu

26 de fev. de 2010

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade

25 de fev. de 2010

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.

Sebastião Alba

24 de fev. de 2010


Petit Nicolas", do cartunista Jean Jacques Sempé.
Pelos olhos, passam.
Pelos ventos, arrastam
Pelos olhos, passam
Repara, encara
Pelos olhos
Abertos , secretos
Fatos, relatos, exatos
Bagagem das verdades
Um peso, uma nota, um texto



Camila Karina

23 de fev. de 2010

O homem que diz "dou"
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz "vou"
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz "sou"
Não é!
Porque quem é mesmo "é"
Não sou!
O homem que diz "tou"
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor

Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

Amigo sinhô
Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha
Não vá!
Que muito vai se arrepender
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!


Vinicius de Moraes


*Música que não sai da cabeça
Definição de Humorismo:

- Humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há duas espécies de humorismo: o trágico e o cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir; o cômico é o que é verdadeiramente trágico de se fazer.


Dicionário de bolso:

- ADIAR - é essa atitude que estamos sempre tomando daqui a pouco.

- BUZINA - é esse ruído que irrita o motorista da frente quando o de trás já está irritado.

- CABOTINO - é esse sujeito que consegue transformar qualquer assunto numa auto-biografia.

- TÉCNICO - sujeito que se especializa em não entender nada de apenas uma matéria.

- ZAROLHO - sujeito que tira uma pequena para dançar e saem as duas.

- Datilógrapha conservadora é a que não se conphorma com a ortographia moderna.

- Dalitófraga estrábica é a que passa o dia inreito trocadno as lestra e as síbalas.

- Datilgfa pregç n/ precis nem compl as plavras.

- Datilógrafa de kolunixta çossial tem de comtar mezmu é com a revizãu.


Cartas
:

— Sou branca, meu marido é branco e tivemos um filho preto. Como o senhor explica isso?

(Jandira - Ceará)

— Lamento muito, mas quem tem de se explicar é a senhora. Vocês que são brancos que se entendam.


Acidente
:

Leocádia era dessas que tinha verdadeira alucinação por "lingerie". Pra ela, o mais importante na linha da elegância era a roupa de baixo. Todos os dias, chegava em casa, abria os embrulhos na frente do marido, exibia calcinhas com bordadinhos e rendinhas de todas as cores e de todas as qualidades de tecidos. O marido não entendia:

— De que adianta tudo isso, se ninguém vê?

Ela sorria orgulhosa:

— É o que você pensa. Pode dar um ventinho na rua, sabe lá?

Um dia ele estava no escritório, quando o chamaram ao telefone. Era do Hospital dos Acidentados, pra lhe comunicar que a sua mulher havia sofrido um desastre. Correu pra lá e assim que fez a descrição da mulher, um enfermeiro disse pro outro:

— Ei, você aí. Leve este senhor naquele quarto. Está procurando aquela senhora sem calça.

Teve um troço, foi medicado ali mesmo. Duas semanas depois de Leocádia ter alta, ele continuou no Hospital, em convalescença.


Leon Eliachar


22 de fev. de 2010

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e.e. cummings
VOCÊ É NERVOSO?

1 - Você buzina uma fração de segundo após abrir o sinal, porque acha que o carro da frente não quer andar?

2 - Você acha que o sujeito de trás é um imbecil, quando se dá o inverso: isto é, quando você está na frente e ele buzina atrás?

3 - Você tem vontade de sair do carro e massacrar o motorista de cada táxi que lhe dá uma "fechada"?

4 - Você acha realmente que todo pedestre que atravessa na frente de seu carro é um idiota?

5 - Você tem vontade de abandonar o carro pro resto da vida, quando fura um pneu no meio da estrada?

CONCLUSÃO: Se respondeu "sim" a todas as perguntas, você não é, absolutamente, um nervoso, mas simplesmente um motorista. Se respondeu "não" a qualquer das perguntas, siga este conselho: por que não compra um carro?


VOCÊ É MEDROSO?

1 - Quando alguém fica batendo com o pé na sua poltrona, num cinema você evita reclamar por que aí mesmo é que o sujeito pode insistir?

2 - Quando o elevador enguiça entre dois andares e a campainha de emergência não funciona, você grita por socorro ou senta calmamente e espera que o porteiro descubra que o elevador enguiçou?

3 - Quando o dono da casa abre a porta pra você entrar, você vai logo perguntando se tem cachorro?

4 - Quando você está acompanhado de uma moça, evita passar no meio de um grupo de rapazes, com receio que dêem piadinhas para ela e você tenha de tomar uma atitude?

5 - Quando você vai à praia e vê, no posto, uma bandeirinha vermelha, deixa de cair n'água?

CONCLUSÃO: Se você respondeu "sim" a todas estas perguntas, desculpe, mas é muito chato. Se respondeu "não” é mais chato ainda, parque demonstrou que não teve nem coragem pra responder "sim".


VOCÊ TEM COMPLEXO DE INFERIORIDADE?

1 - Quando você vê na praia um atleta, pensa intimamente que, amanhã vai começar a fazer ginástica?

2 - Quando sua calça rasga-se na rua, fica constrangido por que podem pensar que você já saiu com ela assim de casa?

3 - Quando você vê uma mulher muito bonita, pensa logo na sua - que não é tanto - mas fica satisfeito mesmo com a que tem, por que acha que não pode ter melhor?

4 - Quando você se olha no espelho, de manhã, procura se justificar de que a que vale mesmo é a simpatia?

5 - Se você é casado, deixa de confessar isso, num grupo de solteiros, com vergonha que pensem que você é otário, ou se é solteiro, também esconde, com receio que pensem que você não conseguiu casar?

CONCLUSÃO: Se você respondeu "não" a todas estas perguntas, não se preocupe, você não tem complexo de inferioridade; se respondeu "sim", pode começar a se preocupar, porque se você não tinha complexos vai começar a ter, agora.


VOCÊ TEM BOA MEMÓRIA?

1 - Você se lembra em que dia da semana conheceu sua mulher?

2 - Você se lembra do número do telefone da sua primeira namorada?

3 - Você se lembra do número de páginas que tinha o primeiro livro que você leu?

4 - Você se lembra com quantos dias de atraso recebeu o seu primeiro ordenado?

5 - Você se lembra de que cor era o vestido de sua tia mais velha, no dia em que você caiu da bicicleta pela primeira vez?

CONCLUSÃO: Respondeu-se "sim" a todas as perguntas, esteja certo: você é um fenômeno. Mas se você argumentar que não pôde responder porque nunca leu um livro, sempre recebeu em dia e nunca levou tombo de bicicleta, então esteja mais certo ainda: Você é um fenômeno muito maior.


VOCÊ É DISTRAÍDO?

1 - Você costuma reparar quando sua mulher, noiva ou namorada põe um vestido novo?

3 - Você costuma se lembrar, exatamente, em que pedaço do filme chegou ou tem que ver mais um pedacinho?

5 - Você costuma, todo ano, cair no dia primeira de abril?

2 - Você tem o hábito de atravessar a rua sem olhar para os dois lados?

4 - Você costuma conversar com uma pessoa durante horas, sem prestar atenção, tentando descobrir de onde é mesmo que você a conhece?

CONCLUSÃO: Se você respondeu "sim" ou "não" a qualquer destas perguntas, isso não tem a menor importância; mas se você não reparou que a numeração deste último teste está completamente alterada, então, meu caro, você não é um distraído, é mais que isso: é um ceguinho. E daí, vai bater?

Leon Eliachar

20 de fev. de 2010

Diante de tantas situações acontecendo no cotidiano de nós, brasileiros, achei esse texto de 1957 que ainda retrata muitas das problemáticas de nosso país.

Há sempre duas maneiras de se resolver um problema: — a maneira acertada e a maneira do Governo. Vejamos como se resolve um problema vital para a economia brasileira, por exemplo, o caso do incremento da cultura do xuxú.

Um médico americano descobre que o xuxú contem quantidades fabulosas das vitaminas "x" e "u".

A imprensa, que não sabe bem para que servem as vitaminas "x" e "u" divulga e discute o fato. "Seleções", entre uma historia de esquilo sábio e uma passagem da vida de Houdini, publica um artigo sobre como a vitamina "x" resolveu o problema das inundações do Mississipi e o efeito da vitamina "u" na cura das verrugas. E pronto! Daí por diante, a vitamina "x" e a vitamina "u" são o assunto do dia, nas entrevistas de Hamilton Nogueira na conversa em família da Rádio Globo; nas colunas de "hiperdietética", da Helena Sangirardi, no "Cruzeiro"; no Almanaque do Eu sei Tudo; no Digesto Econômico; no Boletim Semanal da Associação Comercial; nos ônibus, no lotação, na praia, no futebol e onde quer mais que haja alguém disposto a dois dedos de prosa.

Em pouco tempo o xuxú assume as proporções de salvador do mundo, redentor de todas as mazelas, panacéia universal. A essa altura, aparece nos jornais uma noticiazinha tímida de que um médico tcheco da Missão Rockefeller, no Hawai, está empregando nos leprosários um tratamento pelo xuxú. Pouco depois, o Diário da Noite ou a Folha descobre que um farmacêutico de Itapetininga (Estado de São Paulo) há muito tempo vem curando a tuberculose com uma infusão de xuxú, arruda, guiné e mel coado.

E com essa sanção do charlatanismo, o xuxú atinge um ponto máximo de prestígio, até mesmo nos círculos científicos.

Um italiano de Osasco e um português de Jacarepaguá iniciam a cultura do xuxú em maior escala e ganham dinheiro, porque a essa altura o xuxú já está no mercado negro a um conto e quinhentos a dúzia.

Alguns meses depois Vida Doméstica publica o retrato da graciosa filhinha do Sr. Giaccomo Sparafucile, capitalista, honrado comerciante desta praça e líder do comércio varejista de xuxú. Muitos outros italianos, turcos, judeus, alemães, fascistas, nazistas, e até mesmo um ou outro brasileiro filho de italianos, também plantam xuxú, negociam com xuxú, falsificam xuxú e enriquecem, para comprar "baratas Mercury" no mercado negro, para dar gorjetas de 20 cruzeiros ao barbeiro, para comprar aqueles sapatos de três andares que se usam com terno branco de albene e para ir chupar dentes e discutir futebol nas "boites". A lavoura e o comércio do xuxú prospera de forma inesperada; o Banco do Brasil abre uma "Carteira do Xuxú", para financiamento em grande escala; a Secretaria de Agricultura de são Paulo já distribui sementes e mudas de 825 variedades de xuxú e está, no momento, enxertando o xuxú em jaqueira e experimentando hibridização com melancia para aumentar o tamanho do pomo.

O Rôla anuncia uma "Exposição do Xuxú" em Quitandinha e o I.D.O.R.T. organiza a "Semana do Xuxú" e assim se concretiza, depois do sucesso econômico, o sucesso social do xuxú. No último "Sweepstake" Sua Alteza Real, a Princesa Przinkwski, apareceu trajando um lindo "ensemble brique" com aplicações de xuxús.

Fazendeiros derrubam seus cafezais para plantar xuxusais; o Amaral inventa e patenteia logo uma máquina capaz de colher trezentas toneladas de xuxú por hora; um alemão de Santo Amaro, (ex-químico da I.G.Farben) inventa um processo de extrair Coca-Cola do xuxú; um "engenheiro" italiano "ex-técnico da Marelli" apresenta à imprensa as excelências do seu processo de fazer paralelepípedos de xuxú prensado; prevê-se que, com tal maravilha, todas as estradas do Brasil venham a ser pavimentadas com "artigo nacional" superior ao melhor concreto asfáltico. Um turco de São Bernardo consegue aproveitar a raiz do xuxú para fiação e tecelagem, com enormes vantagens sobre a seda italiana.

A essa altura o Observador Econômico já publicou 10 reportagens de 100 páginas cada uma escritas pelo Dimas, sobre a lavoura xuxuseira de São Paulo e adjacências. O xuxú entra para a casa dos milhões: - dá milhões, alimenta milhões, dá trabalho a milhões, serve para milhões de usos. Com ele se pode fabricar: - paralelepípedos, tecidos, goiabada Peixe, marmelada Colombo, geléia de uva, chapéus para senhoras, Parker 51 e até mesmo doce de xuxú. Dele se extraem, como sub-produtos: - Whisky Schenley, Paraty, Coca-Cola, Cerveja Antarctica, leite, álcool de mandioca, cafeína, teobromina, borracha sintética, óleo de caroço de algodão, azeite Bertoli, ácido sulfúrico, Maravilha de Humphreys, soda caustica, sabão Aristolino e âmbar gris.

Os ingleses tentam plantar xuxú na Birmânia, mas sem resultados; os holandeses o levam para a Indonésia, mas o clima é muito úmido; os americanos querem aclimatá-lo no Panamá, mas o clima é muito quente.

Xuxú? Só no Brasil ele medra. O sucesso do xuxú é pleno, absoluto, indiscutível, inabalável, eterno.

A esta altura o Governo intervém. Depois de muitas reuniões das "altas autoridades" e "próceres", decide-se nomear uma comissão para estudar o caso do xuxú".

Para não alongarmos demasiadamente a epopéia do xuxú, vamos omitir as reuniões dessa comissão que duraram 18 meses.

Passamos diretamente à "délivrance" que se consubstancia nas seguintes luminosas deliberações, logo aprovadas "por quem de direito".

1. - Elaboração de um Código do Xuxú.;

2. - Criação do Instituto do Xuxú;

3. - Criação do Conselho Nacional dos Sub-produtos do Xuxú, Anexos e Derivados com a sigla (é imprescindível uma sigla eufônica) C.N.S.X.A.D.

Nomeia-se para a comissão, encarregada de elaborar o Código do Xuxú, o Fulano, porque gosta muito de lidar no jardim, revelando pendores para a agricultura, o Sicrano, porque é amigo do João Daudt, e Beltrano que tem uma bonita caligrafia. A comissão do Código, que não viu jamais um xuxusal, procura, na Biblioteca Nacional a bibliografia a respeito.

Reúnem tudo quanto se escreveu sobre o xuxú, somam, elevam à quinta potência, acrescentam uns palpites do D.A.S.P., articulam, numeram os artigos e parágrafos e está pronto o Código, verdadeira maravilha de 1.200 páginas couché, impresso na Imprensa Nacional! Prevê tudo, desde a cor da gravata que deve usar o plantador de xuxú até o formulário estatístico para o I.B.G.E.!

Depois vem o decreto que cria o Instituto do Xuxú e começa assim: - "...decreta":

Art. 1. - Fica criado o Instituto do Xuxú, que será dirigido por um Presidente, 5 Vice-Presidentes, 4 Secretários-Gerais, 8 Conselheiros, 15 Diretores Assistentes e 1 Assessor Técnico.

Pargf.º 1º - O Presidente terá direito a um "pourboire" de Cr$30.000,00 mensais, automóvel (Packard ou Cadillac), diária, verba secreta, e será de livre nomeação do Presidente da República (a essa altura já se sabe quem será nomeado).

Pargf.º 2º - O Presidente formará o seu "gabinete" que será composto de:

a- 01 Chefe de Gabinete

b- 05 Oficiais de Gabinete

c- 05 Secretários Particulares

d- 10 Secretários para cada oficial de gabinete

e- 40 Sub-secretários

f- 120 Contínuos

g- 300 Sub-Contínuos.

Pargf.º 3º - Dos cinco Vice-Presidentes, um será nomeado por indicação do Joãozinho Daudt, outro por indicação do Lodi, outro por indicação do Simonsen, outro por indicação da Confederação Nacional das Associações Xuxuseiras e, finalmente, o quinto, que será representante dos consumidores de Xuxú, por livre escolha do Presidente.

Pargf.º 4º - O Presidente terá direito ao tratamento de "S. Excia. o Sr. Ministro Presidente do Instituto do Xuxú".

Pargf.º 5º - Os demais Diretores terão direito ao tratamento de Excelência e, quando referidos na 3.a pessoa, serão incluídos no rol de "altas autoridades".

Pargf.º 6º - Nos banquetes terão assento imediatamente após o Ministro da Agricultura, etc.
E seguem-se mais de 1.694 artigos regulando o pessoal, a hierarquia, as honras, os vencimentos, o tamanho dos móveis, a padronização do material, etc., até o Capítulo XXXVIII, onde se lê:

Cap. XXXVIII

FINALMENTE, DO XUXÚ

Art. 1.695 - Nenhum lavrador poderá plantar xuxú sem primeiro inscrever-se como xuxucultor no Registro de Xuxucultores do Instituto do Xuxú, pagando a taxa módica de Cr$10,00 pela inscrição.

Art. 1.696 - Os xuxucultores inscritos nos termos do art. 1695 terão direito a:

1.º - isenção de impostos federais, estaduais e municipais;

2.º - financiamento de Cr$ 30.000,00 por hectare plantado;

3.º - assistência técnica de xuxuólogos do Instituto;

4.º - transporte gratuito para toda a produção;

5.º - uma assinatura anual da revista do Instituto, intitulada "O Xuxú";

6.º - receber todas as publicações do D.I.P. e do D.A.S.P.;

7.º - uma entrada gratuita em cadeira de orquestra para o Teatro Recreio;

8.º - abatimento de 10% nas compras feitas n '"A Exposição" e no Dragão da Rua Larga, em frente ao qual fica a Light.

Art. 1.697 - Para inscrição no Registro de Xuxucultores o candidato deverá requerer ao Presidente, sobre selos de Cr$ 7,80 federal e Cr$ 0,75 de Educação e Saúde, com firma reconhecida, juntando os seguintes documentos:

a - certidão de nascimento;

b - prova de quitação com o serviço militar;

c - atestado de residência;

d - carteira de saúde;

e - folha corrida da polícia;

f - carteira de identidade;

g - certidão de casamento do avô, do pai e própria, se for casado e mais a certidão de óbito da mulher, se for viúvo; se for solteiro deverá o candidato apresentar prova de seu estado civil;

h - se for estrangeiro, apresentar Segunda via da carteira modelo 19;

i - atestado de boa conduta, passado pelo Prefeito do Município e pelo Delegado do Distrito da residência;

j - certidão negativa de impostos federais, estaduais e municipais;

k - prova de sindicalização;

l - títulos de propriedade do imóvel e certidão do respectivo registro;

m - atestados de vacina contra tifo exantemático, varíola, febre amarela, raiva, mordedura de cobra, etc...

Aqui deixamos de parte o famoso Código do Xuxú, para acompanhar a sorte de um imprudente candidato que resolveu ser xuxucultor com todos os sacramentos e vantagens da lei. Suponhamos que ele seja um lavrador de um município de São Paulo, filho de italianos. Ele se chama Pedro S. Torello e todo mundo o conhece pôr esse nome e com esse nome ele comprou as terras que cultiva e com esse nome paga os impostos. Como não sabe ler nem escrever corretamente, procura um despachante ou um advogado, para tratar dos papéis. A primeira dificuldade está em que ele foi registrado pelos pais com o nome de Pietro, mas, depois, principiou a usar, patrioticamente, o nome de Pedro. É preciso, portanto, em primeiro lugar, fazer uma justificação em juízo, com três testemunhas, para provar que Pietro é Pedro. Para isso ele necessita requerer, sobre selos, com firma reconhecida, "arranjar" as testemunhas, pagar as custas de cartório, etc., Tudo isso demora um mês e custa cerca de Cr$500,00.

Para obter o segundo documento, que é a prova de quitação com o serviço militar, ele também precisa requerer à Circunscrição do Recrutamento, com firma reconhecida, juntando certidão de cidade, retratos, etc. E isso também demora três ou quatro meses, na melhor das hipóteses, mas ainda precisa a chamada para "jurar à bandeira".

O terceiro documento, atestado de residência, também só se obtêm mediante requerimento, sobre estampilhas, com firma reconhecida e atestado de três comerciantes passados sobre estampilhas, com firma reconhecida, etc. Depois vem a carteira de saúde, que também é preciso requerer com requerimento selado, firma reconhecida, etc, etc.

E assim vai. A esta altura o candidato já gastou Cr$5.000,00 e já perdeu 60 dias de trabalho, em peregrinações entre o escritório do despachante e os guichês de protocolo. Já esperou, horas e horas, que o funcionário terminasse a discussão sobre futebol, para informar "por onde andam os papéis"...

...Só então nossa heróica vítima percebe que não é negócio ser xuxucultor e desiste do registro. Vende as terras, compra um sapato de três andares, um terno branco de albene e vai ser intermediário de xuxú, porque é mais "folgado" e dá dinheiro "pra xuxú".

Não existe Pedro, nem o Instituto do Xuxú, mas tudo isso rima muito bem com a forma como se resolvem os problemas brasileiros.


Auricélio Penteado
,

Foi fundador do IBOPE, no Brasil, iniciando em nosso meio as sondagens de opinião pública, nos moldes do Instituto Gallup, dos Estados Unidos. Desligando-se do IBOPE, dedicou-se à publicidade. Algumas de suas sátiras contra os excessos burocráticos e a falsa tecnocracia brasileira tiveram grande repercussão, como a que apresentamos, publicada originalmente na revista "Publicidade e Negócios". Embora longa, para nossos padrões, é uma obra prima.


19 de fev. de 2010

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem - trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escerto do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...


Bernardo Soares

17 de fev. de 2010

minha especialidade é viver - era a legenda
de um homem(que não tinha renda
porque não estava à venda)

olhar à direita - replicaram num segundo
dois bilhões de piolhos púbicos do fundo
de um par de calças(morimbundo)


e.e cummings

16 de fev. de 2010

Distância à esmo
Faminta pela presença que compõe válvulas de sorrisos
Nos sonhos, nos olhos, memórias e mais
Lembranças sem toques e transparências
Tragam-me a composição que não me pertence, mas que me soma
A composição liquida e sólida, emergente, efervescente
O meu composto, diapasão inerente

Camila Karina
eu levo o seu coração comigo (eu o levo no
meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)

tenho medo

que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar

aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes

eu levo o seu coração (eu o levo no meu coração)

e. e. cummings

15 de fev. de 2010

O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


Fernando Pessoa
“II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente”

Caio Fernando Abreu
"Porque só o incompreensível é infinito"


Caio Fernando Abreu

14 de fev. de 2010

As minhas, as tuas, as nossas impressões
Dispersas num vão
O calafrio aproxima-se prevendo olhares e atenções
Os braços encolhidos, olhos expremidos, o encolhimento para tentar desfocar as sensações
Um espaço deserto é acolhedor
Incomparável ao manto quente da tranquilidade

Camila Karina
"Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificancias, que para mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terras de tufões. Outras vezes uma palavra é quanto basta."

Trecho do livro : A Jangada da Pedra (José Saramago)

13 de fev. de 2010

"Se antes de cada ato nosso nós pusessemos prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegariamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.
(..) Porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova"

Trecho do Livro : "Ensaio sobre a Cegueira" - José Saramago
"Tédio por dentro e por fora. (...) meteu a alma em um caixão de cedro, encerrou o de cedro no caixão de chumbo do dia, e deixou-se estar sinceramente defunta. Não sabia que os defuntos pensam, que um enxame de noções novas vêm substituir as velhas, e que eles saem criticando o mundo como os espectadores saem do teatro criticando a peça e os autores"


Trecho de Quincas Borba (Machado de Assis)

12 de fev. de 2010

"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê."

"E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir."


Bernardo Soares

11 de fev. de 2010

-“Renova-te”, foi o conselho mais honesto que os ventos poderiam soprar
Seguido fielmente por seu autor
Ultrapassa corpos, levantando particulas
limpando dejetos, agarrando poeiras e objetos
-“ Recolhe-te”, ordem do consciente. Infringida sem protelar
A quebra destas leis é a maior infração que nossos atos inconscientes podem revelar
E ninguém está livre
Para o maior dos juizes, vestido de temores e auto-defesas
O orgulho.


Camila Karina


É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.
Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!


Edgar Allan Poe

10 de fev. de 2010

Vidros quebrados
Janelas abertas
Portas quebradas
Sangue nas mãos
Sorriso no rosto
Livre caminhar
É o poder da fúria
Prazer em conhece-lo
Um dia, para todos


Camila Karina
Ilustração de Mark Ryden

9 de fev. de 2010

Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má - , sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.

E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapa de agir.


Bernardo Soares

8 de fev. de 2010

Leitores que acompanham este blog, publicamente e anonimamente, resolvi divulgar um pouco do meu trabalho fotográfico aqui.
No caso, ensaios fotográficos artísticos (books) de vários âmbitos, mas repito, são artisticos e empiricos (cenário natural), enfim, quem tiver interesse, manda um email : camila.karina@gmail.com , que explico com mais detalhes, aproveito também para apresentar minha assinatura (logomarca) nas fotografias.

Ah, e gostaria de agradecer também a minha amiga Danúbia Vilhena pela logomarca de presente! Ela trabalha com Design, quem quiser conhecer um pouco mais do trabalho dela, acesse o Casúlo de Idéias

Abraço!

Camila Karina
(...) Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão.

Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras.

Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.

Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochet das coisas... Intervalo... Nada...

De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sofrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim, crochet..."


Bernardo Soares ( ou Fernando Pessoa, inconfundivel)

7 de fev. de 2010

Que flechas são estas em minha direção, encontrando com meus músculos e sangue à queima roupa?
Que pedras são estas em meus ouvidos que pesam nos tímpanos e impedem de ouvir o tom da voz que me agrada?
Que estacas são estas que cravam nos pés, esmagando os dedos, causando formigamentos que espetam minha pele como agulhas?
Murros de sílabas, marcas felinas de patas
Corro para me esconder? Enfrento para entender? Aceito para aprender?
Meu corpo e mente mostram-se doloridos de tantos choques, de várias direções.
Eis a luta, a batalha para adaptação.
Ao abrir os olhos, as pupílas denunciam que não passam de óticas distintas
Uma visão atenta
Outra visão filtrada
Por dentro cada fera tem seu instinto defensivo
Mas cada fera também procura um abrigo.


Camila Karina

6 de fev. de 2010

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.

Dylan Marlais Thomas
"Preferi dormir, que é um modo interino de morrer" (M.`Póstumas)


Machado de Assis
" Não lhe ponha limão.
Já tem uma lágrima."

Júlio Cortazar

5 de fev. de 2010

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.


Gabriel García Márquez

Cavalo indomável
Floresta inexplorada
Difusão de idéias
O pensamento é selvagem
Sem vicios, sem filtros, nudez explicita
Domá-lo é cair, se machucar, levantar e aprender
Tudo que é selvagem é mais dificil de compreender

Camila Karina

4 de fev. de 2010

"Minha alma chove
frio e tristinho
não te comove
este versinho?"



Carlos Drummond de Andrade

3 de fev. de 2010

Recentemente vi por acaso uma ilustração que chamou minha atenção logo de cara, que acabei postando no blog, vocês podem ver logo abaixo a figura da garotinha com a cabeça na mão. Me encantei com a riqueza de detalhes e os traços sombrios e singelos. Fui atrás e descobri que eram de autoria do ilustrador Mark Ryden.

Ele é reconhecido mundialmente e já ilustrou capas de disco de diversos musicos, desde Dangerous, do Michael Jackson e o disco do Red Hot Chili Peppers, "One Hot Minute".

Pesquisando sobre o cara, seus desenhos retratam uma combinação de garotinhas, carne, numerologia, simbologia católica e budista, achei simplesmente fascinante! Ryden também é influenciado pelas artes do filme Alice no país das maravilhas (talvez fator maior que me encantou). Enfim, quem quiser conhecer um pouco mais da arte deste ilustrador acesse : Mark Ryden

Mas também vou postar alguns trabalhos dele aqui.









Dentre todas as Almas já criadas -
Uma - foi minha escolha -
Quando Alma e Essência - se esvaírem -
E a Mentira - se for -

Quando o que é - e o que já foi - ao lado -
Intrínsecos - ficarem -
E o Drama efêmero do corpo -
Como Areia - escoar -

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem -
E a Neblina - fundir-se -
Eis - entre as lápides de Barro -
O Átomo que eu quis!

Emily Dickinson
Chuva forte caindo

- O que você espera?

- Que a chuva passe

-Fora isso, porque não tenta cobrir-se com algo?

- Espero que a chuva passe

- E você, o que espera?

- Também espero que a chuva passe, mas não apenas isso.

- O que você espera além do óbvio?

- Nada, além do inesperado.


Camila Karina


2 de fev. de 2010



"...Todos temos nosso cães ladrando no portão..."


Friedrich Nietzsche
— Você existe mesmo?
— Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? “Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica”.
— Talvez concorde com o último predicado.
— Por quê? – perguntou o Diabo.
— Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une, agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.
— Em mim ou no cardeal?
— Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?
— Não esqueça, fui criado por Deus.
— Não como demônio, mas como anjo - observei.
— Sim, agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo.
— Não me venha com esse papo de Mel Gibson - reagi. — Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça. E foi vítima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.
— Deus tentou me enganar – queixou-se o Diabo. — Manteve em segredo o nascimento de Jesus. Mas à medida em que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado.
— Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extraordinários.
— Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.
— Mas ele ressuscitou, venceu o mal – frisei.
— Sim, Deus me enganou.
— Como assim?
— O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.
— Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
— Isso é um segredo entre mim e Deus.
— Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
— Eu sou a contradição de Deus – vangloriou-se o Diabo.
— Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da “catequese” que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: “Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?” Crusoé confirmou. Então Sexta-Feira concluiu: “Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?” Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
— O que você responderia? – indagou o Diabo.
— Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
— Mas eu figuro na Bíblia! – exaltou-se ele.
— O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa “terra” e Eva, “vida”. A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
— Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
— Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor, há liberdade, inclusive de se fechar a ele.
— E no inferno, você acredita?
— Fico com Dostoievski, “o inferno é a incapacidade de não poder mais amar”. Borges frisa que “é uma irreligiosidade” crer no inferno.
— Mas eu sou real – insistiu o Diabo.
— Deus não tem concorrente – rebati. — Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.


Frei Betto

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