26 de abr. de 2009


O deserto é um modo de ser. De noite? Como é gélido esse lençol de ar que se crispa trêmulo de frio intensíssimo de uma intensidade quase insuportável. De dia o ar faísca. E há as miragens. Não passava de uma criação do sol na cabeça descoberta. O corpo tem pena do corpo. Eu sou uma miragem: de tanto querer ver-me eu me vejo.

O cacto é cheio de raiva com dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo: ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva. Para suavizar essa minha vida que pinga lenta de gota em gota — tenho o poder da miragem. Mas, mesmo assim, me surpreendo como é que hoje (praticamente) já é maio, se ontem era fevereiro?

Cada minuto que vem é um milagre que não se repete.
Tem uma passagem estreita dentro de mim, tão estreita que suas paredes me lanham toda. Nem sempre tenho força para atravessar esse deserto sangrento, mesmo sabendo que, se me forçar a me doer toda entre as paredes, mesmo sabendo que desembocarei para a luz aberta.

Água e deserto, povoamento e ermo, fartura e carência, medo e desafio, surpresa e a antigüidade, o requinte e a rudeza. O vento como companhia. Cubro-me com a melancolia suave, e balanço-me daqui para lá, daqui para lá, daqui para lá. É. É assim mesmo.


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3 comentários:

Eduardo Passos disse...

Lindo! Perfeito!!

Lucas disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Paralelos do Cotidiano disse...

Estou arrancando os cactos meus caros amigos, como já dizia Mário Quintana "Nada continua, tudo vai recomeçar"

Pensaram por aqui

 

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