"Meus cúmplices" na poesia, quero dividir com vocês uma entrevista que encontrei sobre uma das minhas poetas favoritas : Alice Ruiz.
Poeta e compositora, Alice Ruiz traz a cifra da arte desde a infância. Apesar do contato inicial com a literatura ter se dado no campo da prosa – escreveu o primeiro conto aos nove anos de idade –, foi pelas tramas da poesia que a artista curitibana teceu sua trajetória literária. Autora de poemas haicais – forma poética de origem japonesa caracterizada pela concisão e objetividade –, Alice enveredou por essa expressão artística elementar quando conheceu o também poeta Paulo Leminski, com quem viria a se casar aos 22 anos.
Com 19 livros publicados, entre poesia, traduções e uma obra infantil, a poeta também tem uma longa carreira como compositora musical. Tendo realizado sua primeira parceria com o marido, Alice já compôs como letrista ao lado de nomes como Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção, Ceumar, José Miguel Wisnik e Zeca Baleiro. Compositora desde os 26 anos, Alice tem mais de 50 músicas gravadas por parceiros e intérpretes.
Ano passado, a poeta foi agraciada com o prêmio Jabuti de Poesia pelo livro “Dois em Um”, editado pela Iluminuras.
Paralelamente ao trabalho com a literatura e com a música, a artista constantemente é convidada para ministrar oficinas sobre haicais, muitas delas nas unidades do Sesc.
A seguir, Alice conta um pouco de sua experiência, revela como se deu a aproximação com o universo literário, fala sobre o primeiro contato com a poesia haicai, comenta as vicissitudes que diferenciam o ofício do letrista e o do poeta, e descreve, em conversa com a Revista E, o impulso criador que a conduz ao fazer literário: “Eu faço poesia porque ela quer que eu faça, porque ela manda em mim. E eu obedeço. Eu sou apenas um instrumento dela”, confessa.
As primeiras letras
Meu começo de carreira foi meio frustrante. Um dos meus tios, que inclusive tinha nascido no mesmo dia em que eu, era poeta e pintor. Único da família com essa veia artística, ele morreu precocemente, por problemas com o álcool, quando eu tinha apenas dois anos.
Por conta disso, minha família passou a atribuir à arte aquela tragédia. Lembro-me nitidamente da pressão que eles começaram a exercer para que eu me distanciasse dos livros quando perceberam minha inclinação para a literatura. Tanto é que o único livro que tínhamos em casa era a bíblia, livro que eu, por falta de opção e movida por uma sede intensa de leitura, acabei relendo inúmeras vezes.
Essa situação se estendeu até o ginásio, quando descobri a biblioteca do colégio. Aí eu me entreguei finalmente àquela paixão, talvez até um pouco provocada pela proibição. Eu não saía da biblioteca, era uma leitora extremamente ávida. Lembro-me que aos 11 anos ganhei de uma professora um livro de Monteiro Lobato, A Chave do Tamanho [Editora Brasiliense, 1997]; de ali por diante, me enveredei por toda a literatura dele, depois disso, comecei a me interessar por outras coisas, romances...
É interessante que, ao mesmo tempo, minha aproximação com a poesia não tenha sido imediata. Talvez porque a abordagem que tive na escola fosse muito distante da minha realidade de jovem adolescente. Acredito que a poesia esteja muito ligada ao momento. Penso que, para haver empatia, ela precisa dialogar com o real. Então como você pode querer que uma criança ou um adolescente se interesse por uma poesia que não fale com a realidade dele?
Então, justamente por isso, naquela época havia uma relação até paradoxal entre mim e esse gênero literário. Eu fazia poesia, mas achava que não gostava dela. E ocorre que, ao mesmo tempo, nunca consegui parar de escrever, eu escrevia meu diário como todo mundo, só que entre aquelas memórias da adolescência já esboçava uns poemas. Enfim, eu tinha uma necessidade muito grande de me expressar. No fundo, acho que de certa forma todo mundo faz isso, mas aquele que é escritor mesmo continua e não para nunca.
Gênese poética
Esse “dar-se conta” da minha inclinação para a poesia começou a ganhar força quando passei a ter contato com escritores de Curitiba, como o Wilson Bueno e o Jamil Snege. Comecei a mostrar aos poucos as coisas que eu escrevia, sempre ligadas à natureza.
Muito tempo depois fui conhecer o haicai, isso foi aos 22 anos, quando o Paulo [Leminski] me apresentou essa forma de poesia. Eu fiquei besta, porque já fazia poemas curtos sobre a natureza, não dentro das regras nipônicas nem permeados por aqueles elementos estilísticos específicos, mas o curioso é que eu já tinha essa inclinação.
O embrião estava lá, mas eu só me dei conta mesmo quando o Paulo me apresentou. Foi engraçado quando eu mostrei a ele os poemas e ele disse: “Nossa, você faz haicai!”. E eu pensando: “Não faço a menor ideia do que é haicai!”. Mas foi aí que eu entrei de cabeça e isso acabou se transformando numa feliz coincidência.
Verso e música
O mesmo se deu em relação à música. Acho que a letrista em mim nasceu por causa do rock, foi na minha geração que a coisa estourou. Por curtir, eu ficava tentando traduzir as canções e quando meu inglês não dava conta eu inventava. Mas fazia isso considerando os elementos característicos de uma letra musical, eu inventava dentro da métrica, com a rima, com a tônica certa. De modo que, inconscientemente, já estava praticando o ofício de letrista desde aquela época. Só não tinha dimensão daquilo.
E é justamente por isso que eu faço questão de distinguir muito bem a letra musical de um poema. São manifestações artísticas diferentes. No meu processo de criação, percebo que a letra é mais provocada, ou por parceiros que me dão a música para pôr letra ou por circunstância mesmo de estar junto a eles. É uma coisa muitas vezes feita a dois. Então tem uma provocação que vem de fora.
“(...) nunca consegui parar de escrever, escrevia meu diário como todo mundo, só que entre aquelas memórias da adolescência já esboçava uns poemas. No fundo, todo mundo faz isso, mas aquele que é escritor, mesmo, continua e não para nunca”
Já o haicai é um estado muito especial de desapego de mim mesma, um exercício de distanciamento para fazer parte do todo. Percebo que a poesia, por fim, é o que dá muito mais trabalho, um trabalho de leitura, um trabalho intenso de tentar uma universalidade cada vez maior, de expressar o que interessa ao maior número de pessoas.
Aliás, acredito que essa é a mais sofrida das criações, não pelo momento do fazer poético em si, mas por tudo que está por trás de um poema finalizado. Às vezes passo anos gestando um poema até que ele nasça. De um modo geral, eu tenho uma relação muito intensa com as palavras, eu as vejo, não apenas ouço. Alguém fala uma coisa e eu já estou jogando com elas, fazendo trocadilhos, vendo as aliterações que têm ali dentro. Vejo as palavras e penso que esse ensinamento me foi dado pela poesia.
Penso que das artes a que tem menos status é a literatura, porque ela lida com menos dinheiro. O cinema trabalha com ?várias linguagens, as artes plásticas se revelam nas exposições, o músico tem o palco como espaço de expressão. Já a literatura é um universo menos glamouroso e, consequentemente, tem menos status.
Ocorre justamente que, dentro da literatura, o mais pobre dos gêneros é a poesia. Tanto que circula a lenda de que ela não vende. Isso não é verdade. Mas admito que talvez ela venda menos do que prosa, porque a prosa é mais digerível. Em seu ofício o poeta geralmente mexe com questões tão íntimas e pessoais que é quase como fazer terapia sem terapeuta. De modo que quem não está muito disposto ou quem vê literatura como entretenimento definitivamente não vai escolher poesia.
E nesse contexto é interessante observar como dentro da poesia a mais pobre de todas as formas é o haicai, porque nem é ocidental. Somado a isso, seu tema, a natureza, também é de uma simplicidade tocante e difícil de atingir. É uma forma para a qual ainda não há muita alfabetização no Ocidente. Mas, ao mesmo tempo, é impressionante o número de pessoas que praticam haicai no Brasil.
Independentemente do status que ele ocupe no contexto literário, quando penso em minha arte não a vejo com a preocupação de ocupar um espaço na cultura. Eu faço poesia porque ela quer que eu faça, porque ela manda em mim. E eu obedeço. Eu sou apenas um instrumento dela.
Fonte: Portal Sesc SP
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